"Uma semana após ter visto uma foto feita por Paulo e ouvido seu relato sobre o acontecido, uma criança ficou gravemente enferma em outra cidade próxima a Santarém. O leito do hospital do qual sou diretor estava liberado e aguardava pela criança. A aeronave e o médico já estavam preparados, porém já se passava das 18 horas e a mesma não poderia mais pousar na cidade onde o paciente estava. Para completar a situação, o município não tinha iluminação noturna, o que era um entrave para o pouso.
Diante dos fatos, o avião não mais poderia pegar a criança naquele final de tarde, e ela possivelmente não mais resistiria até a manhã do outro dia. Pensei em ligar para o destemido piloto e pedir a ele que repetisse a façanha e pegasse aquele paciente de qualquer jeito, mesmo durante a noite, com a iluminação improvisada. Porém, estaria arriscando demais e, se algo desse errado, ninguém iria compreender que estávamos fazendo algo legítimo, humano, mas ilegal.
Não liguei para Paulo e fui para casa com o coração angustiado, sentindo-me impotente diante das dificuldades. Antes de colocar a cabeça no travesseiro, a enfermeira do hospital me liga.
- Doutor, a criança acabou de chegar em nosso hospital! – me disse, toda contente.
- Como? Quem trouxe essa criança a essa hora da noite? – perguntei.
- Foi um piloto e uma enfermeira, que não sei o nome, em um monomotor, doutor.
A criança havia sido salva.”
São diversas histórias, como essa,
que trazem à tona a complexidade que é praticar medicina na região amazônica,
com enormes obstáculos, mas com muita superação e, além de tudo, aprendizado.
Todas as crônicas, divididas em 21 capítulos, foram escritas pelo
neurocirurgião do Hospital Regional do Baixo Amazonas (HRBA), Érik Jennings.
Jennings conta que a
interação cultural é um importante processo na medicina. E, com base nessas
interações, ele quis reunir o que de mais significativo viveu até aqui em sua
trajetória como um neurocirurgião na Amazônia. Até o nome da obra, Paradô,
remete a isso, a um encontro para conversas.
“Se você parar para
pensar e conversar, você aprende muito. Começa a ver que, para praticar uma
medicina mais eficiente, tem que entender a cultura, entender a geografia da
região”, diz o médico, sempre muito atento aos anseios das comunidades locais.
Para ele, atuar no interior da Amazônia é um grande desafio, pois atende-se a
uma diversidade muito grande de pessoas, com origens e culturas diferentes. “O
médico vai atuar com populações indígenas, remanescentes de quilombo,
ribeirinhos, imigrantes de toda a espécie, numa região do planeta onde você tem
doenças relacionadas à floresta, mas tem doenças relacionadas ao câncer e, no
meio, tem as doenças relacionadas ao trauma”.
O médico santareno
tem uma relação muito próxima com o HRBA. Ele lutou para que o hospital fosse
construído e entrasse em funcionamento, foi Diretor Técnico e, atualmente, é
coordenador da equipe de Neurocirurgia. Mas o fato que mais chama a atenção é a
ligação que teve com o homem que deu nome à instituição: Dr. Waldemar Penna.
Aos quatro anos de
idade, Érik sofreu uma grave queimadura. Uma panela que estava sobre o fogão
caiu e despejou água fervente sobre o seu corpo. Ele foi levado à Casa da
Saúde, um hospital que ficava na orla da cidade. O caso era grave. Os rins
paralisaram. E o menino entrou em coma. Coincidência ou não, quem o atendeu foi
o médico Waldemar Penna.
Santarém, na década
de 1970, era bastante deficiente no atendimento à saúde. E a família não tinha
condição de transportá-lo para um grande centro. A esperança se transformou em
fé, mesmo quando a situação apontava para o pior. “O Dr. Penna cuidou de mim,
mas chegou uma hora que não tinha mais o que fazer. Ele achava que eu ia morrer
mesmo. Mas por sorte do destino, o rim começou a funcionar e eu tive alta”,
conta Érik.
Décadas depois, e já
formado em medicina, os caminhos dos dois voltaram a se cruzar de forma
impactante. Waldemar Penna estava à beira da morte e chamou Jennings para
cuidar dele. “Só que ele me chamou e disse assim: ‘eu vou morrer, eu só quero
que você tire a dor’”. Mesmo com toda a argumentação, Penna disse que estava
tranquilo, que nada poderia ser feito. “Para com a sua ansiedade de querer
fazer algo mais por mim, só faz o que realmente tem para fazer, que é tirar a
dor”. Eu acabei cuidando dele nos últimos momentos, e isso foi muito marcante,
porque foi um cara que cuidou de mim quando moleque”, relembra Jennings.
Waldemar Penna
estava com 91 anos quando faleceu, em julho de 2005, por insuficiência
respiratória. O médico lutava contra um câncer de pulmão. Hoje, seu nome é
carregado pelo Hospital Regional do Baixo Amazonas, que é referência na região,
no tratamento da doença.
“Recebemos esse
exemplar da obra Paradô com muito orgulho. Além de ser uma referência na
Neurocirurgia do Norte do país, Dr. Erik é reconhecido por toda a população
como um médico extremamente dedicado, humano e identificado com as suas
raízes”, diz o Diretor Geral do HRBA, Hebert Moreschi, e completa: “Ele é da
região e conhece muito bem as riquezas e os desafios da população e da medicina
amazônica”.
O lançamento da obra
‘Paradô, histórias vividas por um neurocirurgião da Amazônia’ aconteceu durante
o 8º Salão do Livro do Baixo Amazonas, realizado de 6 a 15 de novembro, no
Parque da Cidade, em Santarém.
Diretor Geral do HRBA, Hebert Moreschi, com o neurocirurgião Érik Jennings |
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